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O cidadão como protagonista da cidade

Entrevista com Luciana Fonseca, diretora do Instituto Cidades Responsivas, para a coluna do Instituto Milenium na revista Exame.


Luciana Fonseca é arquiteta, urbanista, Doutora e Mestre em Planejamento Urbano. Também é sócia fundadora e Diretora do Instituto Cidades Responsivas e Chapter Lead de urbanismo no Grupo OSPA, grupo de desenvolvimento urbano ancorado em arquitetura, tecnologia e economia urbana. Na semana passada, participou de três painéis sobre cidades responsivas, na Conferência Atlantos, Gramado Summit e no Fórum da Liberdade, todos no Rio Grande do Sul. Nesta entrevista para o Instituto Millenium, ela explica o conceito e como isso pode ajudar a ter cidades mais modernas, funcionais e inclusivas.

1) O que são cidades responsivas?

Luciana Fonseca - Responsividade é produzir respostas observando as relações de causa e efeito. Nesse sentido, uma cidade que tem uma boa equalização entre oferta e demanda está sendo responsiva. No cenário atual, a tecnologia e a grande quantidade de dados potencializam as ações de responsividade.

O volume e a velocidade de dados produzidos cotidianamente permitem uma gestão urbana em tempo real, de forma mais eficaz e tendo o usuário como protagonista. A cidade responsiva surge como um modelo que considera seus habitantes como agentes ativos e conscientes. Por meio da tecnologia colaborativa ou crowdsourcing, os usuários podem fornecer voluntariamente informações que se transformam em dados. Diferentemente das smartcities, que se valem de dados captados por sensores enviados para uma central de planejamento para a tomada de decisões, as responsive cities prezam pelos inputs de dados em plataformas como o waze, que organiza a mobilidade através da dinâmica imediata da cidade: ação e reação. É entender que todos somos responsáveis pelo que ocorre na cidade, assumindo, por exemplo, que nós não “estamos” em um engarrafamento, nós “somos” o engarrafamento.

Em síntese, o conceito de responsividade está ligado à transparência dos dados, ao protagonismo dos usuários, e ao foco ampliado na gestão das cidades em tempo real. Quando temos acesso aos acontecimentos, o maior desafio passa a ser responder a eles da melhor maneira possível, no menor tempo. Isso pode ocorrer de maneira mais "orgânica" e “auto-organizável” em uma cidade responsiva. Uma cidade responsiva vale-se mais de ações bottom-up, do que de um planejamento top-down. Para tanto, a ética e a responsabilidade são palavras e ações chave.

2) Quais são as principais características de um projeto arquitetônico que promove uma cidade mais responsiva e sustentável? Poderia nos dar alguns exemplos de projetos da OSPA que exemplificam isso?

LF - A principal característica para que um projeto arquitetônico promova uma cidade responsiva e sustentável é produzir por meio do artefato arquitetônico a melhor resposta para a cidade. Isso ocorre quando entendemos a vocação do lugar, o que pode ser simplificado com o uso de tecnologia e dados, e é importante ressaltar que fazer uso dos dados não desumaniza a realização dos projetos, eles estão apenas nos auxiliando na leitura da cidade.

As edificações devem traduzir o contexto espacial e entender as demandas que estão atreladas às dinâmicas urbanas, para criar diversidade e potencializar a vitalidade urbana. E isso pode ser simples, Jane Jacobs há tempos já sintetizou em poucos pontos o direcionamento do nosso olhar na concepção urbana: trata-se de ter densidade suficiente, misturar usos a fim de produzir dinâmicas em horários variados, primar por malhas urbanas integradas, quadras curtas que potencializam os encontros entre as pessoas, ter olhos pra rua criando interfaces conectadas e não fachadas cegas.

Nesse sentido somos sempre responsivos. O edifício Beat, na cidade de Porto Alegre, por exemplo, é uma edificação de uso residencial e comercial construída ao lado de um edifício protegido como patrimônio histórico. A morfologia do novo edifício foi elaborada a partir do patrimônio histórico localizado ao lado, de modo que as duas construções, ainda que temporalmente distantes, possam conviver harmonicamente no mesmo espaço-tempo.

Fomos responsivos à paisagem urbana e à história da cidade. O programa criado para o edifício, o tamanho dos apartamentos, o valor das unidades, responde às demandas das pessoas que procuram um lugar para viver naquela região. Fomos responsivos ao mercado. O uso comercial dado ao térreo, produz uma fachada ativa que potencializa o uso das calçadas. Fomos responsivos ao espaço público da cidade.

3) Pode falar um pouco do trabalho do Responsive Cities Institute?

LF - Nascemos da união da Escola Livre de Arquitetura - ELA com o Grupo OSPA com o objetivo de unir a reflexão acadêmica aos desafios concretos do mercado. Buscamos um alinhamento de propósitos entre o ensino e a prática, que esteja em consonância com o tempo em que vivemos. Nossas iniciativas nascem a partir das demandas reais percebidas na ação cotidiana da arquitetura e do urbanismo. Queremos produzir as bases necessárias para ter escala na transformação do modus operandi que existe atualmente na concepção de cidades.

Trabalhamos para conectar as diversas frentes necessárias no processo de elaboração de cidades responsivas. Somos um núcleo de educação, pesquisa e difusão de conhecimento, focado em arquitetura e urbanismo, tecnologia e economia urbana que compreende a arquitetura como sendo a agregadora multidisciplinar que deve protagonizar o pensamento e a ação estratégica para o desenvolvimento das cidades. Nas consultorias em urbanismo estratégico, trabalhamos de modo a unir os agentes públicos e privados ao conhecimento e à pesquisa, com base em dados. Ao conectar os pontos desta tríade de agentes - público, privado e acadêmico - , criamos o cenário propício para agir no desenvolvimento urbano.

4) Qual é o papel da tecnologia e da inovação no desenvolvimento de projetos urbanos e arquitetônicos?

LF - Este papel é crucial, tanto conceitualmente, como praticamente. Temos conhecimento de muitos estudos e ações que estão transformando a realidade de lugares por meio da quebra de paradigmas que reprogramam nossa maneira de agir. Isso envolve novas formas de gerir serviços urbanos, como o tratamento de resíduos, bem como novas formas de utilizar energias que sejam renováveis, por exemplo.

Mas envolve também a maneira como as secretarias de urbanismo estão absorvendo a tecnologia e a inovação em suas práticas, como o licenciamento online em Fortaleza, que ocorre em 30 minutos e é, em grande parte, auto-declaratório, gerando um QR code no lugar de assinaturas. Outro exemplo é a plataforma Reviver Centro, no Rio de Janeiro que, ao indicar as edificações históricas de único dono, facilita as operações de retrofit na região.

5) Como você aborda a questão da acessibilidade e inclusão social na criação de espaços urbanos responsivos?

LF - Por meio da responsividade! Mas é lógico que existem desafios a serem enfrentados. Em um primeiro momento, é necessário que todos tenham acesso a rede digital e consigam gerar dados para terem suas dinâmicas mapeadas e consideradas.

De outra ponta, podemos nos valer de instrumentos que existem no Estatuto da Cidade, que são utilizados no planejamento urbano, proporcionando maior flexibilização ao desenvolvimento urbano. Estes, sendo bem geridos, podem auxiliar em um sistema urbano socialmente mais equilibrado. As arrecadações que ocorrem por meio de outorgas onerosas, por exemplo, podem ser investidas como contrapartida na execução de programas e projetos habitacionais de interesse social. Dessa forma, permite-se uma ação mais espontânea do mercado, enquanto a administração pública pode direcionar seus esforços para investir na implantação de equipamentos urbanos e comunitários e na criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes, por exemplo.

6) Quais são os maiores desafios enfrentados pelos arquitetos e urbanistas ao projetar cidades responsivas, e como a OSPA os enfrenta?

LF - Um dos maiores desafios com relação ao planejamento de cidades responsivas está na percepção geral com relação ao tema, e a necessidade de sensibilizar as pessoas para esta realidade: já não se trata de futuro, se trata de presente; já não acontece apenas “lá fora”, acontece aqui também; já não é apenas para alguns, pode ser para todos.

Quando falamos em cidades responsivas e inteligentes, que usam a tecnologia como ferramenta para propor soluções inovadoras, é comum que as pessoas acreditem que para isso é necessário um aparato tecnológico robusto, quando, na verdade, um dos aspectos centrais é a forma como essa tecnologia é operacionalizada. É preciso haver uma governança de dados dentro das organizações públicas e privadas. É preciso saber como tratar e transversalizar essas informações, para poder ter insights preditivos com base na realidade.

No ecossistema OSPA, especificamente, um desafio enfrentado cotidianamente é o excesso de burocracia que existe para agir nas cidades contemporâneas. Enfrentamos isso prezando pela simplificação, tanto no que tange os projetos arquitetônicos, quanto no que toca a escala da cidade. Estudamos as possibilidades de criar planos diretores parametrizáveis e desenvolvemos ferramentas como a plataforma PLACE, que nasceu para simplificar estudos de viabilidade dos projetos por meio da automatização de dados e que, atualmente, avança para o desenvolvimento preditivo de cenários urbanos.

Disponibilizamos o acesso aos dispositivos de controle urbanos de Porto Alegre e São Paulo gratuitamente, e estamos ampliando essa ação com outros municípios. Já o Instituto Cidades Responsivas, além de criar cursos que instrumentalizam as pessoas para agir nas cidades, como o MBA Cidades Responsivas (já em terceira edição) e o curso livre "Transformação Digital para Planejamento e Gestão Urbana de Municípios”, vem trabalhando com consultorias de urbanismo estratégico focado em dados, para identificar a vocação urbana de determinados lugares, reconhecendo as potencialidades e as fragilidades do sistema urbano. Diante de um sistema complexo e multi agente como são as cidades, os dados podem revelar os caminhos mais consistentes, nos livrando do “achismo” e compatibilizando de maneira inteligente as reais demandas das cidades.

7) Olhando para o futuro, quais são as principais tendências e transformações que você enxerga para o desenvolvimento de cidades responsivas, e como o mundo tem lidado com isso?

LF - A visão da cidade como máquina, regida por ações top-down, passa a ser substituída por uma lógica que entende a cidade como um sistema biológico, capaz de se auto-organizar por meio de ações botton-up. Como de costume, a tecnologia alavanca as transformações e a revolução tecnológica que vivemos hoje é digital e informacional. Os modelos computacionais urbanos emergem como ferramentas possíveis ao “novo planejamento” – eles não podem prever o futuro, mas nos preparam melhor para lidar com ele.

Nesse sentido os Digital Twins, na esfera do planejamento urbano, amplificam a capacidade da gestão urbana em tempo real. Os Gêmeos Digitais são o instrumento propício para disponibilizar dados urbanos atualizados - tanto dentro da administração municipal, quanto abertamente em plataformas de dados públicos - e para abrigar algoritmos de análises sobre como tornar o ambiente construído mais eficiente.

Aplicações desse tipo têm surgido no cenário internacional através de pesquisas acadêmicas ou de parcerias entre empresas e prefeituras. No Brasil, as iniciativas de plataformas para visualização de dados urbanos se distanciam do que é visto internacionalmente por apresentarem enfoque em uma temática particular e por ainda não possibilitarem a exploração de cenários futuros a partir das informações atuais. Mesmo assim, já estamos avançando nesse sentido em projetos como a Plataforma PLACE e o Reviver Centro.


 




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